ANTOLOGIA POESIA PALESTINA MODERNA (XIX), por André Da Ponte

ANTOLOGIA POESIA PALESTINA MODERNA (XIX), por André Da Ponte

ANTOLOGIA POESIA PALESTINA MODERNA (XIX)

Samih al-Qassim

سميح القاسم

Diário de Job

Por séculos

a gente dissera

que há ventos,

que há calhaus

e há, disseram,

uma semente

da que brota uma alma no rochedo

abrindo um caminho ao sol.

Que é o que acontecerá se acuitelo* com o meu punhal

a semente, a rocha e o sol?

Dizem que há ventos

e seixos

e raízes.

E que o desespero não será destruído!


Cantigas dos caminhos


Aprendi a não odiar
durante séculos,
mas me obrigaram
a brandir uma seta permanente
diante do rosto duma píton,
a empunhar uma espada de fogo
diante do rosto do Baal demente,
a transformar-me no Elias do século vinte.

Aprendi
durante séculos
a não proferir heresias,
hoje açoito os deuses
que estavam no meu coração,
os deuses que venderam o meu povo
no século vinte.

Aprendi
durante séculos
a não fechar a porta diante dos hóspedes,
mas um dia
abri os olhos
e vi roubadas as minhas ovelhas,
enforcada a companheira da minha vida
e nas costas de meu filho
sulcos de feridas.
Reconheci a traição dos hóspedes então.
Semeei meu umbral de minas e punhais
e jurei, no nome das cicatrizes,
que nenhum hóspede ultrapassaria meu alpendre
no século vinte.

Durante séculos
não fui mais do que poeta,
assíduo frequentador dos círculos místicos,
mas me transformei
num vulcão em revolta
no século vinte!

 

 

 

 

Final da disputa com um carcereiro

Da ínfima janela da minha pequena cela

enxergo árvores que me sorriem,

e terraços que a minha gente enche,

e janelas que choram e rezam

por mim.

Desde a janelinha da minha pequena cela

observo a tua imensa prisão.

Ainda permanece


O sangue de meus mais remotos antepassados
ainda corre em mim
e escuito* sempre
o rinchar* dos corcéis e o entrechocar das espadas.
Levo um sol na minha mão direita
e repito
nas encruzilhadas da noite
o canto da dor.

 

 

 

 

 

Bilhete para a viagem

Quando algum dia seja assassinado

no meu bolso achará o criminal

uns bilhetes de viagem:

Um para ir à paz,

para viajar aos campos e à chuva

e outro, para a consciência da humanidade.

Rogo-te que não desprezes os bilhetes,

meu caro assassino,

suplico-te que viajes…

Os meninhos de Rafah

No cantão da rua

e nos arrabaldes da cidade

meninhos com vastas histórias

empilhavam rimas de livros,

marcos de quadros e estacas de tendas

para construir uma barricada

que fechasse o passo à Escuridade.

Para todos os elegantes homens da ONU

Cavaleiros de todos os cantos

com gravatas a pleno meio-dia

e excitantes polêmicas!

Que é o que pintais, dizei-me, neste tempo?

http://palestine.assafir.com/Medias/Photos/2015/956×643/9f0787e4-e593-4cc8-b80e-951a55325add.jpg

(Pé da foto: O poeta Samif al-Qassim junto com outro poeta – desta vez genial que de aqui a pouco hei postar por extenso nesta Antologia, Makhmud Darwish)