(Lembrança dum dia morno de julho na Branha)
Antes dos seus ardores,
antes de dar claridades à terra
deslumbrando candores
que a escuridade aferra
e, sumida a noite, em candidez cerra,
era sua voz amante,
namorada polo sol comovido.
Com rumor radiante
tomava o seu gemido
com o terno enxergar enternecido:
¬ Estremecida calma dos meus dias,
segura na avidez das minhas veias,
para vestir-me do ardor que chirleias
vem, alenta-me o odor das alegrias
e guarda as violetas que me trazias,
o vento soão que no val ateias,
que descanse nas tuas mãos sereias
a meiguice do dia que tecias.
Ufano no bosque acariciante
fica teu sono na noite amparado,
latido da tua pele fragante,
alinda lento o despertar do gado
convocado na tua olhada ansiante
e tornem flores as ervas do prado.
Raiara mais florido,
confiando todo o tremor interno
ao planeta de cores definido,
dando ao seio materno
o tíbio triunfo do canto eterno.
Do escuro e roxo forno
o pão nascido das mãos e dos fogos
dedica ao dia morno
os seus gozos e rogos
e surge no ar o anelo
lourecendo o voo do teu cabelo.
Dos ramos dos fieitos
onde o sol vai ficando entrelaçado,
emergem satisfeitos
no dia concentrado
todas as luzes dum céu abrilhantado.
Teus olhos, namorada,
luzindo tepidamente as soidades.
Com a voz desmaiada
por invariantes honestidades,
cantam assim suas fidelidades:
¬ Agora, quando aurora se levanta
ama-me com tua olhada, meu amado,
recolhe-me o cabelo com cuidado
e dá-me um bico denso na garganta.
Agora, quando o passarinho canta,
demora-te um pouco mais ao meu lado
e cinge-me pra estar no teu costado
que em ti tersa minha alma se agiganta.
Não vês que o mundo todo fica mudo
quando a minha fala para ti soa
e meu coração encontra-se desnudo?
Não vês que a minha pele te apregoa
quando me olham teus olhos de veludo
e todo o meu ser a ti se agrilhoa?
Chegava o meio-dia
e até o ar era pomposo e brilhante,
o mundo era algaravia,
um piar latejante
e a terra sinfonia concertante.
As vacas dando o rabo,
as abelhas libando entre os lírios,
calmaria sem cabo,
trigos como círios
e os cirros seguindo seus delírios,
pola sombria senda
vão se resguardando os olhos da amada
sem que sequer acenda
a palavra varada
da ternura ébria da mirada:
¬ Nem o lírio, nem a açucena ou acanto
nem a rosada frente da aurora,
nem frescor da noite arrebatadora
têm, meu amado, todo o teu claro encanto.
As aves vão piando com teu canto
e tua fala carinhosa e sedutora
que semeia em minha alma me labora,
me cobre com silencioso espanto.
Desejo polos campos derramada
ver ascender as luzes que reclama,
o claror que marca tua pegada!
Ardendo irá na presença que inflama,
na esperança tanto tempo aguardada
sem lume, eternamente a minha chama.
Morre o dia calado
e aparecer a lua não se atreve
sobre o bosque e no prado
o vento está dourado
e ainda o lento orvalho é muito leve.
Atendem tua chamada,
que é, na tardinha, teu brando arrolo,
as vacas. A Branha fica isolada
na soidade do solo.
Canto, quase dolente, ao teu consolo:
¬ O tempo, valor da clara harmonia,
ficou parado neste curto instante,
nunca a minha alma tão fragrante
sentiu o perfume do frescor do dia.
Nunca o sol-pôr trouxe com tal porfia
a ânsia de te bicar constante,
luz em flor, em aroma cativante,
cálido tremor, força de alegria.
Deixa passar o tempo. Fecha o esqueço
que é no teu alento pura esperança
e goza o lento fragor do meu apreço.
Apenas és, meu bem, pra mim gabança.
A noite cai. Meu coração ofereço
em cálice de bem-aventurança.
[Do livro inédito “Sonata dum quebrado violino”]