UM SONETO TRADUZIDO DE GÉRARD DE NERVAL E ALGUMAS NOTAS SOBRE O POEMA E O POETA FRANCÊS.
Das minhas traduções.

O soneto que hoje coloco perante vós é um dos mais celebrados das letras francesas e, também, um dos mais enigmáticos a começar polo próprio título.

Deste poema tão louvado existem dous manuscritos. Um deles é o chamado Lombard e foi o que enviou o poeta a Alexandre Dumas, junto com uma carta quando estava atacado por um abcesso de loucura em 1853. Este texto é o que usou o romancista para reproduzi-lo no seu artigo sobre Nerval que foi publicado em Le Mousquetaire em 10 de dezembro de 1853 constituindo, assim, a primeira edição do soneto. É a este artigo ao que contesta Nerval na dedicatória de Les Filles du feu (As Filhas do fogo).

Vale a pena dizer algo em volta desse artigo de Dumas. Em 1841 o jornalista e amigo de Nerval Jules Janin escrevera uma nota necrológica sobre o poeta. Durante a crise de loucura de Nerval, em 1853, Alexandre Dumas publicou o artigo que temos mencionado onde, talvez com as melhores das intenções, embora um tanto alegremente, revelava ao público a precariedade da saúde mental do poeta. Nerval sempre teve um grande empenho em ocultar e justificar as suas crises de loucura, que na sua opinião, desacreditavam-no perante o público leitor, e esse artigo dum dos seus mais velhos amigos feriu-o profundamente.

Les Filles du feu, molho de contos e poemas vão aparecer em janeiro de 1854, quando Nerval estava internado na clínica do doutor Émile Blanche em Passy. Trata-se de oito contos longos (AngéliqueSylvie,Chansons et légendes du ValoisJemmyOctavieIsisCorillaEmilie) e do conjunto de doce sonetos, Les Chimères (As Quimeras). No prólogo aproveita para acrescentar um prólogo de resposta a Dumas onde justapunha um texto já publicado, apresentando o projeto dum romance, Le Roman tragique (O Romance trágico) que queria ser uma contrapartida do Roman comique (Romance cômico) de Scarron, mas nunca chegou a escrever.

Porém, deixando isto e indo para o soneto, digamos que há um segundo manuscrito que é chamado Éluard (porque pertenceu ao poeta Paul Éluard), que foi o que usou para a impressão de As Filhas do Fogo. Este manuscrito tem várias notas da mão de Nerval que depois havemos de mencionar.

O texto de Lombard vai acompanhado – igual que o Éluard – do poema Artémis em duas folhas numeradas 2 e 3 e conserva-se junto com uma carta de três páginas que leva por título: La carte du Diable (A carta do demo). Trata-se do Arcano XV do Tarot, que se pode relacionar com o signo zodiacal dos Gêmeos, que é o de Nerval. Até mesmo alguns críticos têm assinalado alusões ao Tarot no texto deste soneto.

O título está em espanhol no original. Todos os comentaristas coincidem que Nerval apanhou-o de Ivanhoe de Walter Scott (capítulo VIII). Também, unanimemente, todos eles repetem que essa palavra significa “desditado” (Desinherited em Scott) e, por outro lado, Paul Bénichou tem demostrado que essa palavra em espanhol nunca significou o que escreveu o romancista inglês. Cabe a dúvida se Scott deu com certeza essa tradução. No capítulo VIII de Ivanhoe pode se entender que é o conjunto do debuxo do escudo – um carvalho desarraigado e o lema El Desdichado – o que vem significar o deserdado, e não diretamente essa palavra com a acepção que tem em espanhol. E no capítulo XII, quando a multidão brada “Desditado! Desditado!”, Scott acrescenta precavidamente: “cuja palavra de ordem apanhavam do lema que levava o escudo do seu coudel.

No manuscrito Éluard o título é “A sina”.

VERSO 2: “Príncipe de Aquitânia” alude a uma das fantasias genealógicas de Nerval, que fazia derivar seu sobrenome (Labrunie) da Torre de Labrunie na Aquitânia e pretendia descer dum nobre dessa região.

VERSO 4: Há uma muito provável alusão ao célebre grabado A melancolia de Albrecht Dürer (Nuremberga21 de maio de 1471 — Nuremberga, 6 de abrilde 1528) que Nerval admirava.

VERSO 6: O Prausílipo é um lugar perto a Nápoles do que Nerval fez um dos seus símbolos obsessivos. Pola sua etimologia significa “cesse da dor”, que é uma alusão à morte. Por estar perto ao Vesúvio, o poeta associa-o com o fogo subterrâneo, um outro símbolo da sua mitologia pessoal. Além disto, perto dele acha-se o suposto túmulo de Virgílio, que encarna para Nerval todo o paganismo e o seu mistério, numa síntese de cultos ocidentais e orientais que anuncia o sincretismo mítico religioso do próprio Nerval. Finalmente, a região napolitana evoca sempre para o poeta o culto a Ísis (Ísis está em As Filhas do fogo), em que via não apenas o culto da Mulher (mãe e amante), embora o exemplo excelso dessa contaminação dos cultos e da unidade, sob diversas formas, das mesmas divindades, proba da unidade de toda a experiência religiosa da humanidade.

VERSO 8: Há no manuscrito Éluard uma nota de Nerval: Jardim do Vaticano, que ajuda a compreendê-lo como a imagem da união de paganismo e cristianismo.

VERSO 9: Amor é aqui o nome próprio: o deus romano; Febo está escrito à latina no manuscrito (Phoebus), o que é talvez alusão a Gaston Phoebus, uma das identidades imaginárias de Nerval; Lusignan é uma personagem histórica sobre o que se formou na Idade Média a lenda de Melusina, mulher serpe namorada deste personagem e que desaparece com um grito quando o amado, quebrando a promessa de não espreitá-la, surprende-a na sua forma de cobra (a etimologia de Melusina semelha ser Mère des Lusignans (Mãe dos Lusignans), passando por Merlusignans e Merlusine. Quanto o que diz de Biron, há um personagem de Shakespeare e vários nomes históricos com esse nome. Segundo Jean-Luc Steinmetz (Edições da Pléiade, 1993), trata-se do duque de Biron, almirante de Henrique IV decepado ao ser acusado de traição; em qualquer caso parece fazer parelha com Lusignan (ambos humanos), como Amor com Febo (deuses ambos), e simbolizar o amante da rainha como Lusignan o amante da sereia.

VERSO 10: Nota de Nerval no manuscrito Éluard: “Rainha Candacia”, nome genérico das rainhas de Etiópia. Alude então a Balkis, rainha de Sabá, outra personagem central na mitologia nervaliana.

VERSO 12: Refere, quase com total certeza, as crises de loucura (reduzidas no verso a duas), que Nerval comparou várias vezes com descensos para os infernos, e das que até então saíra triunfante (como Orfeu, mencionado no verso seguinte).

VERSO 14: Nota de Nerval à palavra Fada, no manuscrito Éluard: “Melusina ou Manto”; “fada” está usado, então, mais no sentido de feiticeira do que no sentido mais janota e hoje mais frequente.

O autor de Les Chimères (As Quimeras), apenas doze sonetos que lhe valeram a imortalidade, atravessado por uma doença fatal deixou o 24 de janeiro de 1855 uma nota para a sua tia: “Quando eu tenha triunfado de todo, terás o teu lugar no meu Olimpo, como eu tenho o meu lugar na tua casa”. Ao dia seguinte deambula por um Paris glacial, tenta conseguir dinheiro, ceia no mercado, perde-se na noite. Ao amanhecer topam-no pendurado numa sórdida ruela (hoje desaparecida) do velho Paris.

 

EL DESDICHADO

Eu sou o Tenebroso, – o Viúvo, – o Inconsolado

Príncipe de Aquitânia da Torre abolida:

Minha só Estrela morreu, – e meu laúde constelado

Porta em si o Sol negro da Melancolia.

 

Na Cova noturna, Tu que me tens consolado,

Devolve-me o Pausílipo e o mar da Italia,

A flor que gostava a meu peito desolado,

E a parra onde o Bacelo à Rosa se alia.

 

Sou eu Amor ou o Febo?… Lusignan ou Biron?

Minha frente enrubesce do beijo da Rainha;

Sonhei na Gruta onde a Sereia nada…

Duas vezes transpus o Aqueronte vencedor:

Modulando por vezes de Orfeu na lira

Os suspiros da Santa e os gritos da Fada.

 

Gérard de Nerval (Paris, 22 de Maio de 1808 – 25 de Janeiro de 1855)

[A tradução está feita desde o texto publicado em “Une forêt de symboles. Une petite anthologie littéraire”, Les Éditions du Carrousel, Paris, 1999, página 316]

 

EL DESDICHADO

Je suis le Ténébreux, – le Veuf, – l’Inconsolé,
Le Prince d’Aquitaine à la Tour abolie :
Ma seule 
Etoile est morte, – et mon luth constellé
Porte le 
Soleil noir de la Mélancolie.

Dans la nuit du Tombeau, Toi qui m’as consolé,
Rends-moi le Pausilippe et la mer d’Italie,
La 
fleur qui plaisait tant à mon coeur désolé,
Et la treille où le Pampre à la Rose s’allie.

Suis-je Amour ou Phébus ?… Lusignan ou Biron ?
Mon front est rouge encor du baiser de la Reine ;
J’ai rêvé dans la Grotte où nage la sirène…

Et j’ai deux fois vainqueur traversé l’Achéron :
Modulant tour à tour sur la lyre d’Orphée
Les soupirs de la Sainte et les cris de la Fée.

Gérard de Nerval

 

Gustave Doré, A rua da Velha Lanterna. O Suicídio de Gérard de Neval. Litografia sobre papel em branco e negro de 1855.

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d1/Gustave_Dor%C3%A9%2C_La_Rue_de_la_Vieille_Lanterne_The_Suicide_of_G%C3%A9rard_de_Nerval%2C_1855.jpg