ANTONIO DE TRUEBA, O INSPIRADOR DE “CANTARES GALEGOS” DE ROSALIA DE CASTRO.

 José André Lôpez Gonçâlez (André Da Ponte)

 Os leitores do livro de Rosalia de Castro Cantares Galegos sabem de cor o que ela deixara escrito no prólogo que escrevera como pórtico do seu poemário editado em 1863:

O Livro dos Cantares de D. Antonio Trueba, que me inspirara e dera alento para levar a cabo este trabalho, passa pelo meu pensamento como um remorso e quase assomam as báguas aos meus olhos ao pensar como Galiza se levantaria até o lugar que lhe corresponde se um poeta como Antonio o dos Cantares fosse o destinado para dar a conhecer as suas belezas e os seus costumes. Mas a minha infeliz pátria, tão desventurada nisto como em tudo o demais, tem-se que contentar com umas páginas frias e insulsas, que apenas seriam dignas de achegar-se de longe às portas do Parnaso se não fosse pelo nobre sentimento que as criou. Que isto mesmo me sirva de desculpa para os que justamente criticarem as minhas faltas, pois penso que o que se esforça por desvanecer os erros que mancham a sua pátria é credor a alguma indulgência!

 

(Cantares Galegos por Rosalia de Castro, in Cantares Galegos, Clássicos da Galiza, Vol. I, Academia Galega da Língua Portuguesa, página 4).

 

Quem foi esse poeta que à nossa poeta nacional tanto lhe inspirara e dera alento?, quem foi esse António dos Cantares que tanta influência exerceu na nossa grande autora até o ponto de tentar remedá-lo e, bem seja dito, de forma genial?

É a esse esclarecimento à que havemos dedicar as linhas que a seguir vêm para ficarmos sabendo dum escritor do que bem pouco se sabe na Galiza e que mesmo está semi esquecido na sua pátria original. Para dizê-lo com palavras do seu biógrafo Ângel de la Iglesia,

Ante todo quisséssemos deixar de vê-lo como até agora o fomos vendo: como uma estátua de verde e melancólico bronze, colocada nuns jardins, a cujo pé, uns señores com cartola pronunciam uns sonoros discursos. Temos de procurar que Trueba siga um caminho inverso ao do protagonista do conhecido relato de Zunzunegui. Trueba é a estátua que tem de ir para o homem

(Antonio de Trueba, Introduição, página 3)

O nosso bom bardo viu a primeira luz na pequena aldeia chamada Montellano, pertencente à comarca das Encartaciones, da freguesia de Galdames ao pé da serra de Llangón no ocidente do País Basco, em 24 de dezembro de 1819 ou 1821, pois a data não é muito certa. Segundo o próprio poeta “esta imprecisão revela a vontade latente no povo chão de evitar que os jovens fossem forçados a se sacrificar em contendas fraticidas”. Aos poucos messes é levado para o vizinho concelho de Sopuerta, dentro do partido judicial de Valmaseda, terra originária do pai, tal como a mãe era oriunda da de Galdames e é alí, em Sopuerta, onde recebe as primeiras letras dos benemértios mestres Tomás de Santa Coloma e José de Sagarmínaga.

Muito cedo se levantou nele a paixão poética. Um tio do nosso poeta – Manuel de la Quintana –, conhecido pola alcunha de “El Basco” era um rapsoda oral, mas à diferença dos versificadores em idioma eúskaro – os bersolaris – seu tio fazia-o em castelhano. É assim que desde bem rapaz compõe versos ao jeito de seu aedo tio e ao compasso de sua prima Pepa, “grande tanjedora de pandeireta e cantora” vai pondo emoção poética aos acontecimentos.

Quando ainda apenas contava com quinze anos, o general liberal, Pedro Sarsfield Water, Conde de Sarsfield, vinha de entrar em Bilbau e o “lobo das Amezcoas”, Tomás de Zumalacárregui y de Imaz, partindo de Miranda de Ebro encaminhava-se com as suas tropas tradicionalistas na direcção da capital bizcainha com o fim de a pôr sob sítio (O grande relato sobre o cerco da capital biscainha durante a Terceira Guerra Carlista, 1873-1874,  foi escrito por Miguel de Unamuno no seu primeiro romance, “Paz en la guerra” que viu ao lume em 1897 e que vivamente recomendo desde estas apressadas linhas). Nesta conjuntura, os pais, velando não fosse recrutado, enviaram-no para Madrid junto a um primo de sua mãe, José Vicente de la Quintana, regente de uma ferrageria que vinha a ser aliás, irmão do pároco da aldeia de Trueba.

O próprio poeta vai nos dar notícia da sua vida na cidade de Madrid:

No comércio de ferrageria primeiro, na rua Toledo, número 81, e depois na de Espartero, número 11, permaneci quase dez anos, aproveitando o pouco tempo que me deixava livre o trabalho e o sono para deitar algo sobre o que apreendera na escola e nos soutos de Sopuerta”, acrescentando com algum distante cheiro a Galdós:

Todas as noites havia uma tertúlia no comedor do meu principal, à luz de uma lâmpada, que se acendia, como o velão da loja, à piedosa salutação de “Louvado seja Deus.- Por sempre louvado”. Os trabalhadores subíamos para incorporarmos naquela tertúlia às dez no verão e às nove de inverno, após cerrarmos a loja, e pouco depois chegava o principal, que tinha passado o resto da noite nalguma outra loja falando de negócios de bolsa ou ouvindo ler um jornalinho nocturno titulado El Castellano, que naquela época andava muito na moda e todas as noites espalhava notícias frescas da guerra civil, da que resultava sempre que os chefes rebeldes tinham fugido em vergonhenta derrota”.

Por volta dos trinta anos, abandona a ferrageria e consegue um emprego no Concelho de Madrid com um salário de dez reais diários e, por essa mesma altura, escreve na Revista Vascongada que se edita em Vitória, dirigida polos seus amigos Ayala e Manteli, para de seguida estampar a sua ágil pluma artigos em La Época de Madrid e, quando fundar Manuel Maria de Santana em 1848 La Correspondencia de España e sob a proposta de Castro y Serrano incorporar-se como redactor dessa publicação. É também por essas datas que colabora em El Semanario Pintoresco Español, el Museo Pintoresco ou El Correo de la Moda.

O escritor Ricardo Becerro de Bengoa forneceu-nos um brilhante retrato físico do poeta:

Era alto, de rija complexão e um nada curvado para adiante nos seus últimos anos de vida e sempre levou, desde rapaz, algo caída a cabeça para a frente, baixos os olhos e sereia e melancólica a olhada, enquando não parolava com as pessoas da sua estima, em cujos momentos brilhava o carinho nas suas claras pupilas e se marcava um amante e sincero sorrisso nos seus lábios…  Usou do seu cigarro tanto ou mais do que da sua pluma e com isto fica dito que consumiu mais tabaco que tinta, e esse inocente e filosófico viço dominou-lhe de maneira absoluta, como fiz constar num dos seus mais agradáveis contos

E outro escritor, Luís Lande acrescentou, por seu lado:

O seu exterior é o dum verdadeiro montanhês, alto, forte, de feitios um bocado torpes, de facções regulares e sem nada marcadamente expressivo, e vai sempre distraído e caviloso; porém sob aquele exterior modesto, aquele homem singelo e ingênuo, oculta um carácter enérgico e nenguma circunstância da sua vida, por penosa ou difícil que tenha sido, encontrou-o inferior à prova

Em 1859, sendo já moço velho, casa com Teresa Pardo. A viagem de recém-casados do novo casal é para a comarca natalícia do poeta das Encartaciones. A visão das terras que o viram nascer comove sobremaneira o poeta, desde que sua mãe tinha falecido enquanto ele trabalhava em Madrid:

O autor sabe por própria experiência o que se sente ao ver, após longa ausência, o campanário que nos dera sombra e os sinos que nos deram alegria quando pequenos”.

Em maio de 1860 nasce a sua primeira filha, Ascensão e mantém relações com os principais escritores espanhóis da época: Pedro António de Alarcón, Fernán Caballero e Cecília Böhl de Faber e lê com fruição os principais escritores da Europa e América: Dickens, Poe e Chateaubriand.

Dous anos após nascer a filha, em 1862, a Deputação de Bizkaia oferece ao poeta o posto de Cronista e Arquiveiro Geral do Senhorio. A proposta é de alto rango pois o acordo fora tomado na Assembleia celebrada sob a Árvore de Guernica e avaliada por três mil biscaínhos. A ideia que lhe parece a Trueba maravilhosa é tomada com receio polos seus amigos. Assim, o escritor Hartzenbusch, como porta-voz, faz-lhe ver que o nome e a soada que tem em Madrid pode ser pôr em perigo se é que se vai para províncias. Mas, os seus paisanos António López de la Calle e Juan López de Jáuregui insistem:

O Senhorio, sabedor de que um de seus filhos deseja viver no seu seio e consagrar-se nele ao cultivo das Belas Letras, quer proporcionar-lhe uma pensão decorosa, embora modesta, para que poda realizar este propósito”.

Perante tanta insistência, Trueba, em finais desse mesmo ano vai pra Bizkaia. É ele quem fai de guia para a rainha Isabel II quando a monarca viaja polo País Basco e no tempo em que se soleniza a Exposição Universal de Paris, escreve o “Rascunho da Organização Social de Bizkaia”, meritório trabalho que lhe valeu muitas distinções. Dele é também o documento redigido para o rei Alfonso XII, pedindo para não sancionar a Lei de Abolição dos Foros. Homem bom, escreve, doído:

Não acerto a odiar ninguém polo só feito de não pensar em política como eu”.

E acrescenta ainda:

Se saberei eu que canalhas são os partidos políticos!… Desde que no mundo se disputa de palavra, por escrito e ao sangue e fogo sobre qual sistema de governo é melhor, se o absolutista ou o liberal, se o republicano ou o monárquico, se o dos muitos ou o dos poucos, tomaram parte nesta desputa os homens mais sábios do mundo e ainda não se puido averiguar qual é o melhor dentre estes sistemas de governo”.

Ao sobrevir a Segunda Guerra Carlista (1870-1876) uma das primeiras vítimas vai ser o nosso poeta, que tem de se dimitir dos seus cargos no Senhorio acusado polos liberais de ser suspeito de carlista. Contudo permanece em Bilbau como primeiro redactor de El Correo Vascongado, jornal que fundara Sabino de Goicoechea para defender a causa do rei Alfonso XII.

Como trinta anos atrás, a guerra volve arrancá-lo de sua pátria para levá-lo como folha seca mais outra vez para Madrid.

Mas, nem sempre há amarguras na alma. A colônia basca em América, sobretudo a da Argentina, Paraguai e Uruguai, abre uma subscripção pública para render-lhe homenagem e, por conselho de José Rufino de Olaso, o importe monetário recolhido vai ser dedicado a presentear-lhe com uma casa de seu em Bilbau.

Cumpria-se assim o anseio do poeta que escrevera uma vez sobre as suas mais íntimas ilusões:

Um dos meus sonhos dourados de quase toda a minha vida é ter uma casinha e trás dela um hortinho cheio de flores e árvores frutais”.

Ele, perante tanta generosidade dos seus paisanos, em suas Notas Autobiográficas, com um humor um pouco amargurado diz que os emigrantes tinham se empenhado e torná-lo rico quando velho, mas que ele sabia que a felicidade neste mundo não estava no que se tinha ou se deixava de ter nas tulhas, mais melhor o que se leva no coração.

Na última parte da sua vida terrenal, António de Trueba vai de novo para Bilbau residindo junto com sua esposa, Teresa e a sua filha, Ascensão, na rua Ibáñez. É na sua morada bilbaina onde projecta escrever uma História Geral de Bizkaia e redige a Tradução castelhana de todos os nomes vascongados das vilas de Bizkaia que apareceram em El Noticiero Bilbaíno. Trueba, ainda que não conhecera o basco quando neno, chegou a apreendê-lo e a dominá-lo de forma suficiente para fazer as suas averiguações que podem ser consideradas, ainda hoje, muito estimáveis.

Contudo, a vida dá duros baques e oscilações. Em 1883 falece a companheira do poeta, Teresa, mas em 1886 recebe a alegria, em contraste, do casamento de sua filha Ascensão com Julião Irurozqui, jovem pamplonês que é professor no Instituto Bizcaíno e Letrado Asesor da Comandância de Marinha e do Porto de Bilbau. E assim, de seguida, vêm-lhe a ledice dos netos. Quando já lhe chegava a ancianidade petando na sua porta, uma neta, a quem se lhe põe o nome de Inês, adoça a sua velhice e ainda mais demulce com a chegada do seu segundo neto, Fernando, de quem pouco poderia desfrutar o pobre velho ao morrer aos escasos messes de ter nascido a criatura.

Num triste inverno bilbaíno, em 10 de março de 1889, quando as árvores ainda não se cobriram das verdes folhas primaverais nos jardins de Álbia, frente de sua casa, Antonio de Trueba y de la Quintana, entrega a sua alma à imortalidade.

O dia 10 de novembro de 1895 inaugurou-se nos jardins da Praza de Älbia o monumento que por mão sábia do grande escultor valenciano Mariano Benlliure, obra que mereceu a Medalha de Honra por unanimidade na Exposição Nacional de Belas Artes de 1895, colocada por cima do pedestal do arquiteto bizcaínho Severiano de Achúcarro,  olha da altura a paisagem que tão bem amou e cantou.

Ainda estava fresca a tinta do seu derradeiro poema que hoje se rememora num altorelevo da igreja de São Vicente de Abando:

ÚLTIMA

         Dizem que o cisne quando morre canta,

                   e que hoje tanto de mortal a minha dor tem,

                   que acaso é a do cisne minha garganta.

                   A vontade de Deus é justa e santa.

                   Faga-se em mim, Senhor, o que quiser!

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BIBLIOGRAFIA:

  • El libro de los Cantares, José Muiguel Guardia Bagur, El Mundo Pintoresco, ilustración española, Madrid, 30 de enero de 1859, año 2, nº 5, páginas 35-38.
  • Antonio de Trueba, Ángel de la Iglesia y Gómez de la Vega, Colección Temas Vizcaínos, nº 7, Caja de Ahorros Vizcaína, Julho de 1975.
  • El libro de los cantares por Antonio de Trueba, Editorial Amigos del Libro Vasco (Edição limitada de 300 exemplares numerados do 1 até o 300. Referência A-13-3-84. Exemplar nº 115, Bilbao, 1984).
  • De flor em flor, D. Antonio de Trueba. Editorial Amigos del Libro Vasco, Edição facsimilar do ano 1882, Bilbao, 1986.
  • KATALOG DER DEUTSCHEN NATIONALBIBLIOTHEK, https://portal.dnb.de/opac.htm?method=simpleSearch&query=128821329.
  • Trueba, Antonio de (1819-1889) in, http://www.cervantesvirtual.com/FichaAutor.html?Ref=226
  • Antonio de Trueba, un escritor vizcaíno olvidado que merece más atención, Angel María Ortiz Alfau, El Correo Español-El Pueblo Vasco, domingo, 6 de julho de 1986.
  • Centenario de la muerte de Antonio Trueba. Colegios e instituciones homenajean a Antonio de Trueba en su Centenario, C. García e Una vida entre Euskadi y Madrid, E.B., diário Egin,domingo 5 de março de 1989.
  • Antonio Trueba em el centenario de su muerte, Elías Amézaga, Muga, nº 71. Ano IX, dezembro de 1989, páginas 54-63.
  • Trueba y la Quintana, in Project Runeberg, http://runeberg.org/nfcj/0042.html
  • Antonio de Trueba y De la Quintana, Antón el de los Cantares. Idoia Estornés Zubizarreta, Auñamendi Eusko Entziklopedia – Bernardo Estornés Lasa Fondoa, http://web.archive.org/web/20140810024315/http://www.euskomedia.org/aunamendi/132344.

 A propósito de dos textos desconocidos de Antonio de Trueba”, José Antonio Ereño Altuna, Letras de Deusto, nº 97, vol. 32 (2002), pp. 27-62.

 Cantares Galegos, Rosalia de Castro, Coleção “Clássicos da Galiza”, Vol. I, Academia Galega da Língua Portuguesa. Edição de Higino Martins Esteves, Academia Galega da Língua Portuguesa – Edições da Galiza, Barcelona, 2009.

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FOTOS

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Monumento a Antonio Trueba, obra de Mariano Benlliure, nos Jardins de Álbia de Abando, Bilbau.

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Capela de Montellano, Galdames (Bizkaia)

Autor: kromioussos

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Ponte da Ola sobre o rio Barbadun em Montellano, Galdames (Bizkaia)

Autor: gazteakk