ANTOLOGIA POESIA PALESTINA MODERNA (XXVI)
Makhmud Darwish
محمود درويش
Penúltimo discurso do índio perante o homem branco
Morto, dixem?: Nấo há morte.
Só uma muda de mundos.
Seattle.
Chefe dos Duwamich.
I.
Assim, somos os que somos no Mississipi. Possuímos o que nos resta de ontem,
mas a cor do céu mudou e o mar polo* Leste
também. Ó senhor dos brancos, senhor dos cavalos, que é o que queres
dos que vão de caminho para as árvores da noite?
Elevada é a nossa alma e sagrados os pastos. E as estrelas
são palavras que alumiam. Esquadrinha-os e a nossa história cabal lerás:
aqui nascemos, entre água e fogo, e de aqui a um nada renasceremos nas nuvens
beira da costa azulada.
Nấo mates mais a erva. Uma alma possui que em nós defende
a alma da terra. Ó senhor dos cavalos, ensina o teu corcel para que pregue perdấo
à alma da natureza polo* que tens feito às nossas árvores.
Árvore, irmấ.
Fizeram-te padecer tanto como a mim.
Nấo rogues comiseraçấo
Polo* lenhador de minha mấe e da tua.
II.
O chefe branco compreenderá as velhas palavras
aqui, nas almas em liberdade entre o céu e as árvores.
É um direito de Colombo a liberdade de topar índios em qualquer mar.
Direito seu é chamar os nossos espectros pimenta ou índios.
Pode quebrar a bússola do mar para que se endireite
e confundir ao vento do Norte, mas nấo crê que os humanos
são semelhantes, como o ar e a água, além do reino dos mapas,
que como se nasce em Barcelona, nascem, mas em todas as cousas adoram
ao deus da natureza e nấo o ouro.
E Colombo, o livre, procura uma linguagem que cá nấo achou,
ouro procura nos crânios dos nossos bondosos avôs
e conseguiu o que desejava dos vivos e dos mortos
Porque é que desde o seu sepulcro prossegue a eterna guerra de extermínio
e de nós nấo restam mais que as galas para a ruína e a plumagem leve sobre
os vestidos dos lagos? Setenta milhões de corações arrebentados abundarão
para que voltem da nossa morte, como um rei, sobre o sólio do tempo novo?
Nấo chegou o momento, estrangeiro, de encontrarmo-nos como estranhos num mesmo [tempo,
num mesmo país, como rente dum abismo se encontram os estranhos?
Para nós o que nos pertence e a vossa porçấo do céu.
Para vós o que vos pertence e a nossa parte de ar e água.
A nossa parte de calhaus para nós e para vós a vossa de ferro.
Vem para repartirmo-nos a luz na força da sombra. Elege o que desejar
da noite e deixa-nos duas estrelas para que enterremos os nossos mortos no firmamento.
Apanha do mar o que desejares e deixa-nos duas ondas para pescar.
Colhe o ouro da terra e do sol e deixa-nos a terra dos nossos nomes.
Volta com a tua gente, estrangeiro, e procura as Índias.
III.
Árvores modeladas da palavra do deus são os nossos nomes e pássaros que voam mais [alto
que os fuziles. Nấo fendas as árvores do nome, vós que vindes
em guerra desde o mar. E nấo lanceis os vossos cavalos como archotes polas* planícies.
Vós tendes o vosso deus e as vossas crenças e nós os nossos.
De Ele nấo façais um porteiro no palácio do rei.
Apanhai as rosas dos sonhos nossos para olhar a alegria que vemos nós.
Dormi à sombra dos nossos sabugueiros para voar como as pombas,
como os nossos bondosos avôs antes de voltar em paz voaram.
Há-vos faltar, brancos, a lembrança da viagem polo* Mediterrâneo,
há-vos faltar a solidão da eternidade num bosque que nấo assoma ao abismo,
há-vos faltar a sabedoria das desgraças e uma derrota nas guerras,
há-vos faltar uma rocha que se resiste ao fluxo do veloz rio do tempo,
há-vos faltar uma hora para a contemplaçấo de qualquer cousa, para que amadureça em [vós
um céu indispensável para a terra, uma hora para duvidar entre dous
caminhos. Um dia há-vos faltar Eurípides e os poemas de Canaã e os babilônios.
Hão-vos faltar
as cantigas de Salomấo a Shulamite, a açucena da saudade.
Há-vos faltar, brancos, uma lembrança que adestre os cavalos da loucura
e um coraçấo que esfregue as rochas para que o brunissem na chamada dos violinos.
Falhar-vos-á uma trégua com os espectros nossos nas infecundas noites do inverno,
um sol menos aceso, uma lua menos cheia para que o crime apareça
menos majestoso na pantalha. Tomai o vosso tempo
para matar a Deus.
IV.
Nós sabemos o que encobre esta eloqüente ambigüidade
um céu que do nosso se pendura e fadiga a alma, um sabugueiro
que sobre os passos do vento anda, uma fera que erige um reino nos
buracos da atmosfera ferida e um mar que a madeira das nossas portas salga.
A terra nấo era mais pesada antes da criaçấo, mas
nós o soubemos antes de tempo. Os ventos hão nos contar
a origem nossa e o fim, mas hoje tiramos o sangue ao nosso presente
e soterramos os nossos dias na cinza dos mitos. Atenas nấo é para nós.
Conhecemos os nossos dias polo* fumo do lugar e Atenas nấo é para nós.
Estamos informados do que o senhor metal nos reserva
e reserva aos deuses que nấo protegem o sal do nosso pấo.
Sabemos que a verdade é mais forte do que a injustiça, que os tempos
mudaram desde que mudaram as armas. Quem alçará as nossas vozes
para uma chúvia seca nas nuvens? Quem limpará os nossos costumes
do fragor dos metais? «Anunciamos a boa nova da civilizaçấo», dissera o estrangeiro,
«Eu sou o senhor do tempo que veio para herdar a terra vossa.
Passai perante mim para que vos conte, cadáver a cadáver, sobre a superfície do lago»
«Anúncio-vos a boa nova da civilizaçấo» o estrangeiro dissera. «Que vivam os [Evangelhos. Passai
para que reste só a divindade para mim. Os índios mortos sấo melhores
que os vivos para o nosso Senhor dos céus. Deus é branco
e branco é este dia. Vós tendes um mundo e outro nós».
O estrangeiro pronúncia extravagantes palavras e esburaca na terra um poço
para soterrar o céu. Estranhas palavras o estrangeiro pronúncia
e caça às nossas crianças e às borboletas. Que é o que prometeste ao nosso jardim, [estrangeiro?
Rosas de zinco mais lindas que as nossas? A tua vontade seja
mas, sabes por ventura que a gazela nấo pasta a erva se o nosso sangue a roça?
Sabes que os búfalos e as plantas os nossos irmấos sấo, estrangeiro?
Nấo esburaques mais a terra. Nấo firas a tartaruga,
nas suas costas dorme a terra, a nossa terra mấe, as nossas árvores sấo a sua cabeleira
e as suas flores os nossos enfeites. «Nấo há morte nesta terra».
Nấo perturbes a fragilidade da sua constituiçấo, nấo quebres os espelhos,
nấo amedrontes nem dor motives à terra: os nossos rios sấo a sua cintura
e todos, vós-outros e nós-outros, somos os seus filhos. Nấo lhe tireis a vida.
De aí a pouco poremo-nos de caminho. Tomai o nosso sangue e deixai-a
tal qual é:
O mais lindo que escreveu Deus sobre as águas
para Ele e para nós.
Ouviremos atentamente as vozes dos nossos avôs nos ventos e escuitaremos
latejos nos botões das nossas árvores. Esta terra é a nossa mấe,
toda ela santa, pedra por pedra. Esta terra é uma cabana
para os deuses que com nós moraram, estrela por estrela, e que para nós alumiaram
as noites da prece. Temos caminhado descalços para apalpar a alma dos seixos
e andado despidos para que a alma do ar nos cobra com mulheres
que nos devolvam os presentes da natureza. A nossa história era a sua e o tempo tinha
um tempo para nascermos nela e para retornar dela para ela, restituindo à terra as [suas almas
aos poucos. Custodiamos nas jarras a lembrança dos que amamos
com o sal e o azeite. Penduramos os seus nomes nos pássaros dos regatos.
Éramos os primeiros. Nấo havia lousado* entre o céu e o azul das nossas portas.
Nenhum cavalo pastava a erva das nossas gazelas nas pradarias. Estrangeiro nenhum
as noites das nossas mulheres trespassava. Deixai a flauta ao vento, que chore
polo povo deste lugar ferido que amanhã há chorar por nós.
Amanhã por nós chorará.
V.
Ao nos despedir das nossas lareiras nấo devolvemos a saudaçấo. Nấo nos ordeneis
os mandamentos do novo deus, deus do ferro, e nấo pedais
um pacto de paz aos mortos. Nấo resta nem um de vós
para anunciar-vos a paz de si para si e com os outros. Lá
mais teríamos vivido se nấo houvesse sido polas* espingardas inglesas, o vinho francês e [as febres.
Como há que viver vivíamos, na companhia do povo da gazela.
Cuidadosamente guardamos a nossa história oral e entregávamos as boas novas com inocência e margaridas.
Vós tendes o vosso deus e nós o nosso, vós tendes o vosso passado e o nosso nós. O [tempo
é o rio, e se reparamos no rio, em nós o tempo chora.
Nấo lembrais um pouco de poesia para deter o morticínio?
Nấo nascestes de mulheres? Nấo mamastes, como nós,
O leite da saudade? Nấo pusestes, como nós, asas
para vos unir à andorinha? Nós anunciamos a primavera. Nấo tireis da bainha as armas.
Ainda poderíamos cambiar algumas dádivas e algumas cantigas.
Aí estava o meu povo. Aí jaz meu povo. Aí estão os castanheiros
que escondem as almas do meu povo. Meu povo há retornar em ar, luz e água.
Conquistai a terra da minha mấe pola* espada, mas nấo assinarei
o pacto entre a vítima e o seu assassino. Nấo assinarei
a venda dum palmo de espinheiro em redor dos campos de milho.
Sei que me despeço do último sol, que me envolvo no meu nome
e caio no rio. Sei que retorno ao coraçấo da minha mấe
para seres tu admitido no teu século, senhor dos brancos. Ergue sobre o meu cadáver
as estátuas duma liberdade que nấo devolve a saudaçấo e cava a cruz de ferro
na minha sombra de pedra. Montarei devagar aos cimos do canto,
ao hino do suicídio das comunidades na ocasiấo em que acompanhem a sua História à [distância.
Ceibarei* nelas aos pássaros das nossas vozes. Venceram aqui os estrangeiros
sobre o sal. O mar misturou-se com as nuvens. Venceram os estrangeiros
em nós à casca do trigo e dilataram as linhas do telégrafo e a corrente eléctrica.
Aqui o falcấo suicidara-se de tristeza. Venceram-nos aqui os estrangeiros
e nada restou em nós no tempo novo.
Evaporam-se aqui os nossos corpos, nuvem por nuvem, no espaço.
Aqui cintilam as nossas almas, estrela a estrela, no espaço do canto.
VI.
Decorrerá um longo tempo antes que o nosso presente em passado se converta, como [nós.
Haveremos marchar primeiramente para a nossa morte. Defenderemos as árvores que nos [cobrem
e o sino da morte. Uma lua que desejamos no alto das nossas cabanas defenderemos
e o aturdimento das nossas gazelas. A argila da nossa cerâmica defenderemos
e o nosso plumấo na asa das derradeiras cantigas. De aqui a um bocado
edificareis o vosso mundo acima do nosso. Projectareis o caminho dos nossos túmulos
em direcçấo à lua artificial. Este é o tempo das indústrias,
o tempo dos metais. O champanha dos poderosos nasce do carvấo.
Há mortes e colônias, mortos e calcadores, mortos
e hospitais, mortos e radares que vigiam os mortos
que mais uma vez morrem na vida e mortos
que após a morte sobrevivem, mortos que ao monstro das civilizações ensinam a morte
e mortos que morrem para transportar a terra sobre os restos.
Ó, senhor dos brancos, para onde levas o meu povo e o teu?
Rumo a que abismo leva à terra este robote armado até os dentes de aviões
e porta-aviões? Em direcçấo que muito extenso abismo vos elevais?
Tudo o que desejeis vosso é: a nova Roma, a Esparta da tecnologia
e
a ideologia da loucura.
E nós, fugiremos dum tempo para o que nấo preparamos ainda a nossa ideia.
caminharemos para a pátria do pássaro, como uma bandada humana de precursores.
Olharemos a nossa terra desde os calhaus da nossa terra, desde os furados das nuvens,
Olharemos a nossa terra desde as palavras das estrelas. Olharemos a nossa terra
desde o ar dos lagos, desde a penugem do tenro milho, desde
a flor das campas, desde as folhas do álamo, desde todo
quanto vos assedia, brancos, mortos que falecem, mortos
vivos, mortos que voltam à vida, mortos que espalham o segredo.
Outorgai um prazo à terra para que diga a verdade, toda a verdade
sobre vós
e sobre nós,
sobre nós
e sobre vós.
VII.
Há mortos que adormecem nos quartos que edificareis,
há mortos que visitam o seu passado nos lugares que demolis,
há mortos que passam sobre as pontes que tendes de construir,
há mortos que aclaram a noite das borboletas, mortos
que chegam à alvorada para tomar o chá convosco, tão tranquilos
como os deixaram os vossos fuziles. Consenti, convidados do lugar,
alguns escanos livres aos convidados para que vos leiam
as cláusulas da paz com os mortos.
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